Por Paquito*
“Não queria ser concerto, apenas a canção” é um dos versos do samba mais conhecido de Ederaldo Gentil, O ouro e a madeira, música gravada pelo próprio autor, depois pelo conjunto Nosso samba (graças ao empenho do radialista e produtor Adelzon Alves), pelos Originais do Samba, - comandado por Mussum, o mesmo dos Trapalhões – e até pela popular orquestra do francês Paul Mauriat. Aqui, e em suas canções mais significativas, Ederaldo exercita uma espécie de poética da humildade, da pequenez, como um valor para a vida e motor da composição de música popular. Da pequenez viria a plenitude existencial. E a origem do fenômeno da música popular é mesmo o limbo. Do considerado desimportante ou mesmo sujo, o lodo, como conclui o refrão do samba: “O ouro afunda no mar / Madeira fica por cima / Ostra nasce do lodo / Gerando pérolas finas”.
Esta consciência poético-musical está na obra deste homem nascido em Salvador-BA, no dia 7 de setembro de 1944, de uma família de 7 irmãos de pai e mãe, (o seu pai teve, com 3 mulheres, 28 filhos) como ele mesmo escreveu na contracapa de seu último LP, Identidade. Trabalhou desde os nove anos de idade, carregando saco na feira, empregado em lavanderia, e aprendeu a profissão de ourives e relojoeiro, tendo sido criado no bairro 2 de julho e, depois, no Tororó, aquele mesmo da cantiga de roda, “eu fui no Tororó/ beber água e não achei/ encontrei bela morena/ que no Tororó deixei”. Desde cedo, Ederaldo se ligou à forte tradição das escolas de sambas da cidade (essa tradição perduraria até a década de 1970), fazendo parte da escola Filhos do Tororó, mas compondo também para as demais. Tanto que, em 1969, quando o compositor brigou com a sua escola, todas as outras nove saíram com sambas-enredo compostos por ele, menos a Filhos do Tororó. Em 1973, reconciliado com a sua escola, compôs o enredo In-lê in-lá, pelo cinqüentenário de Mãe Menininha do Gantois. Ederaldo, aliás, dizia sobre o candomblé, “vem de lá o fio melódico de tudo que eu componho”. Sua mãe era mãe-de-santo, e, quando Ederaldo não compunha samba, suas músicas sempre tinham algo a ver com outros ritmos afro-baianos.
Jair Rodrigues, em 1970, gravou duas músicas de Ederaldo, Berequetê e Alô madrugada, esta em parceria com Edil Pacheco. Aliás, Ederaldo fez parte da turma do samba da Bahia, ao lado de Batatinha, Riachão, Roque Ferreira, Nelson Rufino, Walmir Lima, o próprio Edil e Tião Motorista, primeiro a gravar um samba seu, Esquece a tristeza, também em 1970. Batatinha e Riachão são de outra geração, mais velhos, mas, tendo permanecido residindo em Salvador, são uma espécie de patronos dos demais.
Colocar essa turma no nicho do samba, no entanto, mais do que valorizá-los, soa como uma tentativa de encastelar o gênero que, dos anos 30 em diante, representou o maior símbolo musical da nossa identidade. Com o advento do termo MPB, no período pós-Bossa-Nova, que engloba artistas que fazem samba também, mas são identificados como criadores mais modernos e múltiplos, ficou reservado aos sambistas a pecha de tradicionais - como se estes se encarregassem da tradição pura – e aos “emepebistas” – na falta de um termo mais preciso - a pecha de “avançados”. Tanto uns como os outros têm seu quinhão de tradição e de renovação da linguagem. O fenômeno da canção popular tem uma tradição forte, renovada por seus pares, vindos dos mais variados e inesperados nichos.
Ederaldo, não fugindo à regra, era ancorado na tradição, mas fez das suas ao colocar o número do documento de identidade numa música, ao fazer samba em forma de carta ou carta em forma de samba etc, com melodias arrojadas como em Rose, parceria com Nelson Rufino. Coincidência ou não, as profissões de que se ocupou antes de optar pelo samba, também tratam do cuidado na feitura de objetos artísticos (ourives) ou são fundadas na precisão (relojoeiro e jogador de futebol).
Sobre suas influências e cônscio de sua originalidade, Ederaldo disse “Eu tive, isto sim, algumas admirações, alguns mitos, mas não pretendia fazer o que eles faziam”. Talvez pela fluidez das melodias, Ederaldo é comparado com Ataulfo Alves, mas sua música também dialoga com Noel Rosa, pela vocação filosófica nos sambas. Noel fez em João Ninguém um retrato de um tipo popular: “João Ninguém não tem ideal na vida / além de casa e comida/ tem seus amores também/ e muita gente que ostenta luxo e vaidade/ não goza a felicidade / que goza João Ninguém”. Ederaldo, em De Menor, quando diz “Sou o menor dos pequeninos/ o mais pobre dos plebeus (...) o mais baixo pigmeu”, e finaliza com “Eu sou a felicidade”, dialoga com Noel, encarnando o próprio João Ninguém. Ederaldo é o samba olhando pra si, pra sua condição de pequenino, em oposição a, por exemplo, Zé Kéti, com “Eu sou o samba(...)/ Eu sou o rei dos terreiros/ sou eu quem leva a alegria/ para milhões de corações brasileiros”. Os dois estão certos, essa dualidade grande/pequeno faz parte da natureza mesma do samba e, por extensão, da música popular.
No programa de TV, MPB especial, dirigido por Fernando Faro, em 1974, estrelado por Ederaldo, Batatinha e Riachão, faz-se notar, em contraponto à altivez de Batatinha e à alegria de Riachão, o olhar intenso de Ederaldo, que tinha o domínio da composição dos sambas-enredo, mas foi mais original nos sambas introspectivos. Enquanto Batatinha humaniza conteúdos e sentimentos (“dona solução”, “dona tristeza”), Ederaldo filosofa e faz aforismos, como na já citada O ouro e a madeira e A sina e a ceia, parceria com Roque Ferreira, apresentada no Festival de MPB da Globo, em 1981, com a participação dos Tincoãs, grupo que, como Ederaldo, tinha forte ligação com o candomblé.
Após se decidir pela música, Ederaldo tentou a sorte no sudeste do país, tendo passado tempos em São Paulo (1973), e morado no Rio. Foi gravado por Alcione, no período de maior sucesso dela, e voltou para Salvador em 1983. Em 1993, deprimido, foi morar com a irmã Denise na Vila Laura, no bairro de Brotas, e lá faleceu em 30 de março de 2012. Foi-se o mestre, ficaram as canções.
*Paquito é músico, produtor e pesquisador musical.