Disco

Identidade (1984)

Crítica de álbum

Por Paquito* Este disco foi gravado pela Nosso Som, isto é, gravado nos estúdios WR, de Salvador, onde praticamente nasceu a axé-music, quando Luiz Caldas e a banda Acordes Verdes gravaram o Fricote, de Caldas e Paulinho Camafeu . Luiz…

Por Paquito*

Este disco foi gravado pela Nosso Som, isto é, gravado nos estúdios WR, de Salvador, onde praticamente nasceu a axé-music, quando Luiz Caldas e a banda Acordes Verdes gravaram o Fricote, de Caldas e Paulinho Camafeu . Luiz Caldas (bandolim) Carlinhos Marques (baixo e violão de 6), Cesinha (bateria e percussão), Alfredo Moura (teclados) e Silvinha Torres (coro), excelentes instrumentistas da Acordes Verdes, participam do LP, junto a Edson 7 Cordas, às do choro baiano, no violão de 7 cordas e cavaquinho. No entanto, o que poderia resultar em colaborações originais acaba por descaracterizar o som de Ederaldo com o padrão de gravação dos anos 80.

Faixas como Amor amor, Baticum  e Choro-dor, tem refrões com apenas uma palavra – no caso das duas últimas, um “ô ô ô” e um “iê iê” típico dos refrões pra “pegar” do período – como se o compositor quisesse pongar na onda daquele tipo de som. Mas Choro-dor consegue ser bela com sua letra desesperada, significando metaforicamente o criador perdido e dorido diante da tentativa de se adequar a outro padrão sonoro: “Meu choro-dor / Desceu qual o charriot / Rolando na ribanceira / Se fez uma cachoeira / Em prantos a desaguar (…) / Seguiu rumo à correnteza / E foi se guardar na represa / Das profundezas do mar”.

Mas belas e fortes canções aparecem como o samba Cimento fraco, que compara o fim de uma relação com a construção de uma casa – “Você foi cimento fraco, meu bem /Na Construção do nosso lar”e Identidade, quase uma atualização pessimista de De Menor no plano social, com uma ousadia estética; o samba abre com a citação do número do documento de identidade do próprio Ederaldo:  “05342635 / É o meu número o meu nome / Minha identidade / Mínimo salário é o meu ordenado / 12 horas de trabalho / Que felicidade, que felicidade”.

Aqui a felicidade de ser pequeno da canção De Menor se ressignifica enganosa e ironicamente no verso “que felicidade”. Na parte seguinte, a melodia demora a se concluir, também significando a profusão de pressões e atribuições por que passa o trabalhador, confuso ante o cotidiano estressante e a expectativa de ser feliz só na velhice.

“Acordo sem dormir / Faço pelo sinal / Ouço o radinho de pilha / Pra saber do horário / Preparo quase nada / E levo na marmita / Vou dependurado e os sinais fechando / Chego atrasado, é cortado o dia / São tanto os descontos / Que nem mesmo sei / Me falam de vantagens que eu jamais ganhei”.

Capinam é o parceiro de Ederaldo em Luandê, (essa música ia ser gravada por Clara Nunes, mas ela faleceu antes de fazê-lo), problematizando poeticamente as tensões raciais da sociedade baiana, com uma melodia no ritmo e rito do candomblé.

“Lá na Bahia / Todo branco tem um nego na famia / Gegê, Bantu ou nagô / Seu doutor, vim de Luanda / Pra namorar a sua fiá / Nego amor, nego amor (…) / Fui oiá pra sua fiá / Vi o mundo clarear / Seu Alvinho e dona Clara / Tem medo da noite virar dia / Vê a sua fiá branca / Aumentar mulataria”.

O contraste também fica por conta da combatividade de Provinciano , de Ederaldo e Roque Ferreira, hoje um dos sambistas prediletos de Bethânia.

“Sobrevivi / Dilacerei / Orgulho do rei / Punhal na mão”.

Roxinha e Nordeste de Amaralina são sambas sacudidos, enaltecedores do valor e maestria do samba enquanto dança.

Curioso nesse disco é a voz de Ederaldo, se assemelhando em alguns momentos a cantores pré-bossa-nova, um seresteiro redivivo, admirador de Augusto Calheiros.

*Paquito é músico, produtor e pesquisador.


05342635 / é o meu número, o meu nome, minha identidade
Mínimo salário é o meu ordenado / 12 horas de trabalho
Que felicidade / que felicidade

Acordo sem dormir / faço pelo sinal
Ouço o radinho de pilha / pra saber do horário
Preparo quase nada / e levo na marmita

Vou dependurado / e os sinais fechando
Chego atrasado / é cortado o dia
São tanto os descontos / que nem mesmo sei
Me falam de vantagens / que eu jamais ganhei
É o INPS, FGTS / IR, ISS, o seguro e o PIS
Com trinta de trabalho / estou aposentado
E com mais de 70 / eu penso ser feliz


Ye Ye ye ye ye
Ye ye ye ye ye
Ye ye ye ye ye / chorei meu choro – dor
Chorei na dor maior do amor
Meu choro – dor

Meu choro – dor / desceu qual o charriot
Rolando na ribanceira / se fez uma cachoeira
Em prantos a desaguar

Meu choro – dor / seguiu rumo à correnteza
E foi se guardar na represa / das profundezas do mar

Um choro assim / daqueles que não tem fim
Que é faca / facão de dois gumes
Que é lume na escuridão

Meu choro – dor / lavou toda minha alma
Depois trouxe a paz e a calma / brilhando meu coração


Samba roxinha samba / samba prá gente ver
Roda roxinha roda / mostra o seu rebolê

Dança roxinha dança / bambeia igual pião
Canta roxinha canta / encanta esta multidão

Roxinha / quando você dá uma rodada
Não é só a arquibancada / que se rende aos teus pés

É toda a escola de samba / de onde és
Que se sente orgulhosa / ao te ver tão soberana

E é neste momento que eu vejo / quanta vontade e querer / de gente querendo ser você
Não, não importa saber / se é nobre ou se mora na favela
O importante roxinha / é que neste três dias / és a alteza na passarela


Eu vou / vou com Crispim
Ao samba de chula / na casa de Seu Joaquim

Tem uma viola de 12 / tem uma de 8 / tem outra de 10
Cê vê sinhazinha sambando / parecendo que tem quiabo nos pés

Vai deslizando nos grãos de areia / sai piabando, igual sereia
A primeira umbigada / a baiana que dá
Também sou baiano / também quero dar

Tem um pandeiro oco / chocalho choco na marcação
Cê vê poeira subindo / das tamancas que arrastam / as pitangas do chão
E as cadeiras bulindo, oi / e as cadeiras bulindo

No alto da Santa Cruz / fim de linha do Nordeste
Onde a chula aparece / feita dança e defesa
Por isto que Amaralina / nunca mais viu a tristeza


Yê, eu vim de Luanda, ê / Eu vim de Luanda, ê / Meu Luanda

Lá na Bahia / todo branco tem um nêgo na famia
Gegê, Bantu ou Nagô

Seu Doutor, eu vim de Luanda / prá namorar com sua fia
Nêgo amor, nêgo amor

Ponha rendas na varanda / e a moça na sacristia
Ela já disse que sim / não precisa de alforria

Antes da abolição / A lição eu já sabia
Na Bahia todo branco / tem um nêgo na famia

Yê, Eu vim de Luanda, ê / Eu vim de Luanda, ê/ Meu Luanda

O luar lá de Luanda / anda nas bandas de cá
Fui oiá pra sua fia / vi o mundo clarear

Seu Alvinho e Dona Clara / têm medo de noite virar dia
Vê a sua fia branca / Aumentar mulataria

Yê Quilombos da Bahia / Neste mundo, todo mundo
Tem um nego na famia

Yê, Eu vim de Luanda, ê….


Você foi cimento fraco, meu bem / na construção do nosso lar
Você foi cimento fraco no pilar / a base cedeu, lá se foi nosso lar

O rádio entortou / a viga partiu
A parede rachou / o patamarse abriu
A madeira solou / o telhado caiu

O traço da massa foi fraco / pro piso e pro teto
Você foi cimento fraco / no concreto

Eu preparei meu terreno com o gabarito / de pedra dura estrutura e alvenaria
Fiz todo piso em mármore ferro e granito / e com madeira de lei eu fiz as esquadrias
E agora me vem você com seu cimento fraco / todo fracasso da obra da minha ilusão
Só o que me resta agora / é carregar nos ombros
Destroços, escombros / do amor em demolição


Quanto mais a gente cresce / bem menor a gente fica
Quanto mais a gente ama / mais se aproxima o sofrer
Mas, que fazer, se são das dores do mundo / que fazemos o alicerce do viver?

Sobrevivi, dilacerei / orgulho do rei, punhal na mão
Sobrevivi, dilacerei / orgulho do rei, punhal na mão

E assim provinciano era meu sorriso / prefácio de um poeta que eu sonhava ser
Fui fazendo versos, fui rimando a vida / me dando sem pensar em nada receber

Das minhas mãos aflitas, fiz a paz mais pura / do meu canto tristonho, fiz um rouxinol
Mas acabou meu sonho, a vida veio dura / Eu vi que um sol maior não é um tom menor

Aí caí no mundo como o mundo gosta / com o sorriso à mostra e o punhal na mão
Dilacerei meus versos e não mais sonhei / me fiz combatente, orgulho do rei

E hoje mergulhado sob essa certeza / que pena que me dá de assim ter que ser
Guardar marcas na alma, mas trazer na face / a fúria do processo de sobreviver


Amor, amor, amor, amor / amor, amor, amor, amor

Gostaria de lhe escrever / um poema ou uma canção
Mas sendo eu um poeta aprendiz / mando estes versos que fiz
Ditados por meu coração

Amor, amor, amor, amor / amor, amor, amor, amor

São versos simples / mas verdadeiros
De um coração sofredor
Que se deu por inteiro / e em tantas batalhas lutou
Se não venceu a guerra / pelo menos pelejou


Seu motorneiro / toque o bonde nessa linha
No caminho da Estrada da Rainha

Pelos trilhos a seguir / Cidade Nova, Iapi
Que o meu destino é ir / ver os Reis na Lapinha

Terno das flores das rosas girassóis / a cantar as pastoras, bombardinos e taróis
Lamparinas clareando a Soledade / segue o rancho com estandarte cantando a liberdade


Oh Oh Oh Oh Oh / Oh Oh Oh Oh Oh

Baticum que vem de Aruanda / Axé, divina fé, força que manda
É uma dança, é reza, é crença / que vem do além-mar
O rumpi rompendo aurora para anunciar / Gêge, Nagô e Keto
É lamento, é canto preto / das terras dos orixás

Lê lê lê lê lê / Lê lê lê lê lê

De mistério tão profundo / segredos que vêm do fundo
Do baú do canjerê / é como a dança do tempo
É como o canto do vento / que comandam o viver

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