O músico e produtor baiano Paquito escreve sobre “a trindade negra do samba da Bahia”, encontro histórico de Ederaldo Gentil, Batatinha e Riachão registrado no programa mpb especial, gravado por Fernando Faro em 1974 na TV Cultura.
Quando eu e J. Veloso produzimos o primeiro e único cd de Batatinha, no final dos anos 1990 – e logo depois ele faleceria, sem ver o disco pronto -, recebemos um convite do Sesc para lançar o disco em um show com convidados em São Paulo. Levamos Riachão – de quem produziríamos também e posteriormente um cd -, e recebemos, da Tv Cultura uma fita em vhs com o programa Ensaio – mpb especial samba da Bahia, de 1974, – estrelado por Batatinha, Riachão e Ederaldo Gentil, dirigido por Fernando Faro – para usarmos as imagens de Batatinha ao longo do espetáculo.
Descobrir a edição do mpb samba da Bahia naquele instante foi significativo, pois estávamos entrando pra valer naquele universo.
E o programa Ensaio, criado por Fernando Faro, é provavelmente único no mundo: as câmaras focam principalmente o rosto do músico, mostrando que a música, além dos sons, tem cara e corpo. Não se vê o entrevistador – sempre o Faro, seu criador – nem se ouve as perguntas que ele faz ao artista; a gente só pressupõe as perguntas pela resposta posterior ou pela reação do músico ao ouvi-las.
Então e sempre o entrevistado é o centro do programa, com a mínima interferência do entrevistador, o que não deixa de ser uma interferência, um jeito de olhar.
E quem conheceu Faro, o Baixo, sabe que um clima de afeto por ele instaurado contamina os artistas contemplados pelo Ensaio.
No caso da edição deste mpb especial (era este o nome do programa na década de 1970), ficou registrado o encontro de três autores diversos (dois quase antípodas em termos de estilo, e outro bem mais jovem) do assim chamado samba baiano, majoritariamente urbano, influenciado pelo que se ouvia na era de ouro do rádio, e negro.
A gente sabe da existência de Nelson Rufino, Walmir Lima, Tião Motorista e Roque Ferreira, também talentosos sambistas da boa terra e pertencentes a esta turma, porém essa edição do mpb especial ilumina e revela, em tempo mínimo, muito de Batatinha, Ederaldo e Riachão, naquele instante específico, a trindade negra do samba da Bahia, formando um todo, mas cada qual com seu charme e encantos muito próprios.
Batatinha abre cantando lindamente a sua “Diplomacia”, quase um manifesto poético-social introspectivo que o faz parente de Nelson Cavaquinho e Cartola, e traz poesia na fala, quando diz da Bahia do seu tempo de criança, casario antigo, “ladeiras de calçada, neca de asfalto”, altivo, na dele, com sua voz pequena e precisa.
Na penúltima música que Batatinha canta, Ederaldo e Riachão juntam-se a ele no coro e, a partir daí, o clima é de celebração, com o foco na obra de Ederaldo, o mais jovem, principiando a falar de si, olhar intenso, cismado, e a declaração de que sempre foi “muito pobre”, sem meias palavras, fazendo do pertencimento a sua fortuna simbólica: a parceria com a mãe, mãe de santo, sua homenagem à Mãe Menininha do Gantois e seu samba mais antológico, “O ouro e a madeira”, sempre nos refrões ajudado pelas vozes de Batata e Riacho, feito estivessem num barzinho, à vontade.
Com o princípio da fala de Riachão e de seus sambas, comove ver o decano deles (e único atualmente ainda vivo) tomar ares de menino, fazendo percussão com seus adereços, também assumindo a pobreza material ao dizer que a visão de uma pessoa de quem gosta o faz esquecer a fome, e mandando ver na sua “Chô chuá”, gravada por Caetano e Gil na volta do exílio, sempre o pertencimento: “o meu galho é na Bahia, moço da cabeça grande”; sem esquecermos de mencionar o percussionista – cujo nome não vi nos créditos – e o violão de Vicente Barreto, acompanhantes dos protagonistas, igualmente compondo a paisagem humana do programa.
Batatinha e Riachão chegaram a fazer, posteriormente, duas edições individuais do Ensaio, mas Ederaldo, não. Por isso, essa é a melhor mostra de sua fala & canto, tímido mas firme diante das câmaras, desfiando seu rosário de canções e sua história, com seu rosto, sua voz e seu corpo, pra quem não o viu faceiro e charmoso pelas ruas da Bahia do seu tempo.
Pra mim, especialmente, tendo trabalhado com Batatinha e Riachão – e agora, com a obra de Ederaldo, mesmo sem ter convivido com ele – é um ciclo que se completa.
*Paquito é músico e produtor. Trabalhou ao lado de J. Veloso na produção dos álbuns “Diplomacia” (1998), de Batatinha, e “Humanenochum” (2000), de Riachão. Tem dois cds autorais: “falso baiano”(2002) e “bossa trash”(2008). Colaborou com textos e como pesquisador para o Acervo Ederaldo Gentil.
Veja o programa mpb especial com Ederaldo, Batatinha e Riachão na íntegra: